29 de maio de 2007 - 13:57

Vida de jogador: o carregador de piano por Humberto Peron

HUMBERTO PERON
Colaboração para a Folha Online

Todo jogador de futebol tem prazer em exercer sua profissão. Talvez não exista outra atividade em que o grau de satisfação seja tão alto. E essa condição vai desde o pequeno grupo de milionários que existe no meio até o jogador que luta para receber um salário mínimo em times de terceira divisão.

Por isso, é muito fácil perceber quando um atleta, ou um elenco, tem algum problema. Quem acompanha os treinos já sabe. Se aquele atleta que sempre está dando risada, conversando com os companheiros, ou ao lado do treinador conversando sobre o melhor posicionamento, fica de lado, olhando para o nada, dando entradas fortes num simples coletivo, você logo já sabe: há algum problema.

Já faz algum tempo (na época em que jornalistas tinham mais acesso aos jogadores e não tinham que ficar engessados pelas normas definidas pelas assessorias de imprensas), percebi um caso de um jogador que estava incomodado. Vendo que o jogador estava sentado no gramado, depois de um bom tempo do treino finalizado, me aproximei do atleta.

Fiz algumas perguntas amenas e todas as respostas tinham no máximo duas ou três palavras. Percebendo que a entrevista não iria gerar nenhuma informação importante, rapidamente fiz a pergunta: o que está pegando? O jogador me olhou, como querendo descobrir como eu descobri isso e começou a falar (como em todas as edições que começam com "vida de jogador" não vou identificar o atleta, pois sempre acho que essas histórias são mais importantes que o personagem e elas acontecem a toda hora com vários jogadores em qualquer momento).

" Realmente, tenho andado desmotivado esses dias. Você sabe, já estou há muito tempo aqui e não me acho valorizado, nem pelos técnicos que passaram, nem pela diretoria, nem pelos torcedores e nem mesmo por vocês da imprensa.

Vocês que escrevem nunca destacam as minhas funções. Adoram, como eu sou volante, dizer que eu sou importante para o time e o meu trabalho não aparece para a torcida. Isso não existe. Se eu estou fazendo minha função ela tem que aparecer. Vocês só repararam na minha atuação quando eu erro um passe e dizem que eu não sei passar a bola. Peguem as estatísticas e vejam como eu tenho um dos melhores aproveitamentos de passe do time. Se fizer uma falta, me chamam de violento. É horrível seu trabalho só aparecer quando acontece um erro. Aí, eu sou sempre o mais cobrado.

Fico furioso, por exemplo, em ver como ninguém cita que os três jogadores do nosso time que estão na seleção devem isso à função que eu faço. O lateral-esquerdo só se destaca no ataque porque eu estou sempre fazendo a cobertura dele. O zagueiro central tem o trabalho facilitado porque, muitas vezes, eu recuo e ele fica na sobra. Aí fica fácil para ele pegar as bolas que sobram, estufar o peito e dar suas arrancadas ao ataque. Já o nosso meia-esquerda é outro. Ele é um craque, mas muitas vezes esquece do jogo e não marca ninguém, aí sobra mais trabalho para mim. O pior é ouvir depois de cada convocação ele chegar no vestiário e me falar: 'você me ensinou tudo, e, por isso, eu tenho essa condição hoje'. Só que ele só fala isso no vestiário, deveria fazer externamente, já que agora ele tem mais chances de aparecer do que eu.

Do nosso treinador atual eu pouco posso esperar. A gente convive, existe até um respeito, mas nada além disso. Ele sabe da minha importância no time, fica me falando da minha importância, pede minha ajuda, mas quando a gente conversa eu tenho sempre que ouvir os elogios dele para os outros e nada sobre meu trabalho --nem para o bem, nem para o mal.

Da diretoria eu também pouco espero. Na hora do aperto eles sempre vêem falar comigo. Pedem minha ajuda para falar para os companheiros que o salário vai atrasar, que o valor do bicho vai cair, mas na hora da grana da boa fase pouco me sobra. Na semana passada, por exemplo, vários jogadores tiveram reajuste de salário e o meu aumento não veio.

É duro você se matar, carregar o piano e não ser valorizado. O pior é ouvir que você precisa melhorar em algumas coisas. Cansei, não dá mais para ficar motivado assim.

Acho que falei mais do que deveria para um jornalista."

Três meses depois desse papo, o jogador saiu do clube para ganhar a mesma coisa num time médio e ficar lá até acabar a carreira. O seu time antigo, sem o seu "carregador do piano", se perdeu. Perdeu em eficiência e equilíbrio e os três jogadores que eram sempre convocados perderam suas vagas na seleção.