26 de agosto de 2010 - 18:10

Leia a crônica “A Senhora e a Armadura”, por Gilberto Mendes

A SENHORA E A ARMADURA

Ela acorda logo após o ultimo pio de coruja, imediatamente antes do primeiro cucuritar do galo cujo mister é anunciar para os quatro cantos o novo dia que nasce.

Levantou-se determinada, sem delongas, tendo em mente toda a agenda do exaustivo dia já sincronizada na consciência. Colocou uma vasilha com água no fogo, foi ao banheiro e lavou-se demoradamente, higiene para ela nunca foi um exagero. Saiu, a água já fervia, colocou o açúcar, o pó de café, coou e o cheiro forte da bebida acariciou seus instintos – sorriu, o café é mesmo fundamental.

Encheu uma xícara e tomou ali mesmo, de pé, olhando a noite agonizante pela janela da cozinha, foi neste instante que o galo anunciou oficialmente o novo dia.

Ela foi para o quarto e escolheu sua roupa, sempre limpa e cheirosa, simples e elegante. Vestida, preparou a mesa para um lauto café da manhã para os que acordariam mais tarde: frutas, bolinhos, biscoitos, torradas, café, frios, margarina, tudo bem cuidado, tudo carinhosamente preparado.

Foi para a velha estante e pegou a Bíblia Sagrada que ficava aberta em todo o tempo no ponto nobre da casa, um livro que se percebia facilmente que era muito lido; tomou-o com lágrimas nos olhos e o leu novamente com a mesma fé ardorosa da primeira vez, abençoando a si e a todos os seus. Ao terminar a leitura, era como se houvesse colocado uma armadura e estava pronta para todas as árduas batalhas do dia.

Foi ao primeiro quarto e viu as crianças, os netos, atirou-lhes silenciosamente um beijo em suas faces; no segundo quarto, o filho e, ao seu lado, o livro que com ele adormeceu na noite anterior, beijou-o com a ponta dos dedos, abençoou-o, virou-se, abriu a velha porta de madeira da sala e saiu para a rua e a amarga rotina, feliz e decidida. Desapareceu na escuridão assim que deu os primeiros passos, a noite ainda resistia lá fora...