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Brasil

Tragédia leva desmantelo à vida de milhares na Pará

3 Jul 2004 - 07h23
 Naquela noite de quinta-feira, 17 de junho, a rádio já alertava desde o cair da noite: a barragem estava se rompendo, e a enchente chegaria. Miguel, como tantos outros, não acreditou. Saiu de casa, foi até a beira do Mamanguape vigiar. Nada parecia anormal. Aquela garoa? Nunca que encheria o rio. A família ficou no escuro com a falta de energia elétrica, o que aumentou os temores de algum problema, mas não de uma tragédia como a que viria horas depois.

Lígia não ouvia rádio, mas, por volta das nove da noite, recebeu um telefonema com o aviso. Coisa de não se crer. “Esse rio sempre vem e vai, entra e sai”. O tempo de desacreditar foi mais curto. Em poucos minutos, a água já entrava pelos fundos da casa e pela frente também. Só ela e a mãe idosa em casa. “Agora é Jesus que sabe”. “Mãe, Jesus tá lá e a gente tá aqui. Agora, a gente é que tem que se salvar”.

Maria de Lourdes já estava na cama. A vizinha e os filhos chegaram gritando, saíram da casa com a água pelos joelhos, a rua já cheia. Como Miguel e outros de Entre Rios, salvaram-se subindo no morrinho nu que fica atrás das casas, ponto culminante do bairro, que a enchente não cobriu.

Lígia subiu no telhado da casa. Em meio à força das águas, foi levada para um lado, a mãe para o outro. “Eu não pensava que ela ia morrer desse jeito, não. Já sabia que ela tava perto de ir, com 83 anos, mas num acidente desses, nunca...”.

A mãe dela, Palmira Rocha da Silva, foi uma das cinco vítimas fatais da tragédia em Alagoa Grande (PB), cidade de quase 30 mil habitantes, a 140 km de João Pessoa, na região conhecida como Brejo Paraibano. Área de boas chuvas, densa morraria coberta de plantações de milho e rebanhos entre casas de taipa dos pequenos agricultores, em meio aos canaviais de grandes engenhos.

Cerca de 250 casas ficaram destruídas e quase 800 famílias estão desabrigadas. Pelo menos 300 delas estão dormindo em espaços improvisados em escolas. Quase uma centena de comerciantes perdeu estoques e equipamentos. O governo do estado avalia que os prejuízos podem chegar a mais de R$ 30 milhões.

Tudo por causa do acidente com uma obra de quase R$ 20 milhões, a barragem de Camará, fruto de engenharia “de ponta”, que se rompeu despejando quase 17 milhões de metros cúbicos de água sobre pelo menos duas cidades da região, Alagoa Grande, a mais atingida, e Mulungu.

“Foi desmantelo”, resumem, unânimes, os atingidos, palavra que lembra ruína, desorganização, demolição, desarranjo. Gente como a desempregada Lígia Cristina Rocha da Silva, 39, que sobrevivia com a pensão de um salário mínimo que a mãe falecida recebia. O pedreiro Miguel Ferreira, 31, três filhos, recém-chegado do Rio de Janeiro de volta para a terra natal. Ou a feirante Maria de Lourdes de Lima Nascimento. 48, que se orgulha: “Consegui salvar minha vaquinha”. Mesmo tendo perdido a casa na cidade, pela qual o ex-marido pagou “quatro bichos e um animal”, ou seja, quatro cabeças de gado e um jumento.

Povo descrente da boa vontade humana, vendo a ferocidade da miséria na disputa pelas cestas básicas, roupas e outros recursos enviados pelos governos federal e estadual e por toda a rede de solidariedade que a comoção com a tragédia gerou. “Sabemos que quase todo o mundo aqui é carente, mas precisamos fazer a ajuda chegar apenas a quem foi mesmo atingido pela tragédia”, explica a professora Gerlane Cruz Nunes, 40, que não foi vítima do acidente e trabalha como voluntária na distribuição dos mantimentos.

Enquanto atende o repórter, ela acena com negativas a um grupo de dezenas de mulheres amontoado nos portões da escola que serve como depósito improvisado. “Ah, moça, mandaram tanta coisa, tem pra todo o mundo, a gente também está precisado, deixa pegar só umas coisinhas...”, pede uma delas. “Tem uns que, se a gente se afasta de casa, vão lá para a frente e fingem que moram ali, só pra ganhar a ajuda”, reclama outro.

A principal reivindicação de urgência é pela reconstrução das casas atingidas. “De dia eu tô forte toda, quando chega de noite eu me desabo. Porque você estar na sua casa, pra casa dos outros, tudo depender dos outros, é triste. Não tem coisa pior não”, desabafa Lígia.

“Vixe, como tem Zé. Zé de baixo e Zé de riba. Desconjuro com tanto Zé. Como tem Zé lá na Paraíba”, canta, no rádio do carro, o mais famoso alagoagrandense, Jackson do Pandeiro, ele também nascido Zé, José Gomes Filho. Os zés da Paraíba querem saber quem foi o responsável pelo desmantelo de Camará. “O povo diz que a culpa é do governo. Fizeram a obra rápido demais, e a população é que paga”, reclama Miguel. “Quem devia pagar era o engenheiro”, cogita Maria de Lourdes. Lígia descrê: “Vamos ver se faz ou não faz, porque não dá pra confiar nesse povo não. Confiar é só em Deus mesmo. Você confiar no povo da terra é perder tempo. Hoje promete uma coisa, amanhã já faz outra”.
 
ABr

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